quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O verão de Sam

Brasil, São Paulo, 29 de janeiro de 2012.
Temperatura à sombra: 42º.
Sensação térmica debaixo do chuveiro frio: 92ºC.

Aquele era mais um verão que se mostrava o pior dos últimos 100 anos.
Aliás, a cada novo dezembro, os jornais anunciavam a mesma velha notícia: o pior verão de todos os tempos.

Na rua, qualquer papel de bala atirado ao vento permanecia estático, como em uma pintura. As folhas não rolavam, os fios soltos dos cabelos não se mexiam. Nada. Nem mesmo uma vaga impressão de brisa para acalmar nossos corações.

As pessoas - as poucas que bancavam tamanho desafio - percorriam as ruas como se hipnotizadas, mexendo papéis na tentativa vã de produzir alguma movimentação de ar. Guarda-chuvas se tornaram guarda-sóis.

Da janela de casa observava o ir e vir daqueles que seguiam como robôs para seus destinos. Eu estava mais para cadáver, um corpo estirado, ora no sofá, ora na cama. Sempre acompanhada do ventilador.

O problema é que apesar de quente, sentia fome. E a fuga do sol não pode mais ser levada adiante.
Precisava ir ao supermercado.
Sorvete, salada... Quem sabe algumas frutas para um suco gelado. Qualquer coisa que matasse a fome e frio.

Vesti a roupa mais fresca, acompanhada de chinelos e guarda-chuva/sol e me uní aos robôs da janela.
Cinco quadras e estaria no ar-condicionado; só cinco quadras. Vamos lá!

Enquanto esperava para pesar as frutas, via, ao redor, os poucos insanos que tiveram a mesma ideia que eu.
O sol castigava tanto que nem mesmo a possibilidade de passar algum tempo no corredor dos laticínios parecia atraente.

Não tinha pressa, olhei cada item com paciência e boa vontade, especialmente frios, carnes econgelados.

Ali, entre o freezer de pizzas e de batatas fritas, algo me esperava.
No início era só um garoto alto - com um bom porte físico, confesso - camiseta branca, bermudas e um chinelo curiosamente feminino.
Segui observando ao mesmo tempo em que gelava a bunda no filé de tilápia congelado.

Aquela cabeça com cabelos escuros se virou na minha direção. E, em um breve momento de consciência, percebi que estava descabelada, com resto de rímel embaixo dos olhos, o vestido que usei no meu aniversário de 12 anos e o chinelo do meu pai. Sem falar no tom de pele brilhoso em todo o meu corpo.
Ótimo!

Esse rosto... Ai meu Deus! Não! Não!
O Arthur aqui?! Hoje?!

Pausa para explicação:
O Arthur é um daqueles assuntos mal resolvidos na vida de alguém, sabe?

Fui apaixonada por ele praticamente toda a minha vida e, como você pode imaginar, tivemos algumas histórias. Várias histórias; e a última foi especialmente dramática.

Era agosto de 2012 e estávamos na casa de um amigo em comum, bebendo, jogando cartas e falando sobre aqueles que não estavam presente.

Nossa relação sempre foi bem amizade colorida, de tempos em tempos não resistíamos à tentação e perdíamos algumas horas juntos.
Aquela parecia ser uma noite em que isso se repetiria.

Tequila vai, tequila vem a conversa foi ficando interessante e decidimos - estávamos em 8 pessoas - brincar de Verdade ou Consequência.

Nosso jogo tinha regras especiais e cada um que era premiado com o bico da garrafa tinha que, além de pagar a prenda ou responder uma pergunta, tomar um shot de tequila.

A brincadeira foi esquentando. E esquentando...

Na sétima vez em que a garrafa ficou virada para mim eu já não estava mais muito... hã... .
E a invejosa da Mila sacou isso.
E lá veio a pergunta que nunca deveria ter sido feita.
- Qual transa você apagaria da memória?
E, adivinhem só? Eu respondi. Eu tinha que responder, era o jogo!
Mas, eu poderia ter mentido. Só que não.

As palavras saíram antes de eu abrir a boca.
- Ah essa é fácil! O Arthur!
E pra explicar bem, com riqueza de detalhes (não gosto de deixar as coisas pouco claras): Tipo café sabe? Frio, fraco e fedorento!

Preciso dizer como nossa amizade virou preto e branco?

E aquela tórrida tarde era a primeira vez em que nos víamos desde então.
Ou melhor, eu o vi. Ele fez de conta que não.

Passou na minha frente - lindo - e me ignorou.
Garoto rancoroso.

Passei em outro corrredor para comprar o último produto do dia e, em homenagem ao Arthur, o suco foi substituído por um café. Desta vez, forte, cheiroso e com gelo!

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

A gostosa do 602

Se os mortos descansam a sete palmos de terra, a situação é um tanto diferente 6 andares acima. Na verdade, do térreo ao décimo andar deste edifício, descanso é algo que acontece apenas segundas, quartas e sextas - e em horário comercial.

602.

Seis - zero - dois.

Imagina a garota mais deliciosa que você viu na vida. Agora dá zoom... Um pouquinho mais... Vai, pode ir mais. Agora observa, cuida cada detalhe atentamente.
Cabelos, orelhas, olhos, sorriso, nariz.
Nada disso importa, de fato. O melhor está mais abaixo.
Peitos que mais parecem pêras suculentas e macias, cinturinha e aquela bunda.
Cara! Aquela bunda. Não existe coisa igual.

Essa sou eu, imaginando meu simpático namorado apresentando a vizinha aos amigos.

Patético.

Algumas vezes por semana um grupo de 5 a 10 caras se reunem no apartamento do Pedro pra jogar Playstation. Pelo menos, era o que faziam até o fatídico abril deste ano.

O nome dela até hoje - quatro meses depois - ninguém descobriu.
Nem mesmo o porteiro sabe. o que não é bem um problema, pois a moça já tem como ser identificada. A gostosa do 602.

A mudança dela para o prédio (que, inclusive, é o mesmo onde moro), trouxe algumas alterações na rotina dos exemplares masculinos daqui.

Se antes atividades como colocar o lixo na rua, passear com o cachorro ou ir ao supermercado eram problemas dos 8 aos 80 anos, hoje não mais.

Mas não se iluda, meu amor. Segundas, quartas e sextas, das 8h às 19h, as coisas ainda funcionam como antigamente.

Beleza, bunda, peitos e discrição eram abundantes na Vaca do 602.
Confesso que eu e muitas outras vizinhas passamos a nos acotovelar pelo direito de conferir a caixa de correspondência com nossos pais, filhos, namorados, amantes, enfim.

Todos acompanhavam cada passo dela.
O estalar do seu salto nas terças e quintas e o perfume floral eram rotina no prédio pela manhã.
À noite, a nota do perfume era mais intensa, ao contrário do caminhar, que ganhava ritmo mais "dançoso" e suave.
O tilintar das chaves no chaveiro com a Torre Eiffel eram igualmente reconhecíveis. Cada passada, a procura pela chave no fundo da bolsa, o tempo em que gira a primeira volta e, 27 segundos depois a segunda, são obras primorosas de Deus, Buda, Alá, whatever.

Curiosamente, meu pai corria para verificar a trava do carro neste exato momento. O cretino do Pedro andava para um lado, girava para o outro e descia para comprar Coca-Cola, ajudar alguma senhorinha com as compras. Qualquer coisa.

A verdade é que nós, mulheres, não tínhamos muito o que fazer. Estávamos nós mesmas apaixonadas pela Vaca-Gostosa do 602.
Era como uma epidemia de filme americano. E em como todo filme de epidemia, tinha de haver alguém não-vulnerável ao vírus, que desenvolveria uma vacina mágica e nos salvaria da zumbilândia.

Esse alguém chava-se Argelindo. Argelindo Mudanças.
E vinha com o adesivo de "Deus é fiel", logo acima de "Veículo guiado por Jesus".

Oito meses depois de sua chegada, sem qualquer tipo de anúncio, o caminhão parou na porta do Edifício Piazza Navona e levou consigo o coração - e a bunda e peitos - de cada um de nós.

Argelindo. Nosso salvador. Amém.

Sem grandes perdas, voltamos todos para a vida de vivos-vivos.

Infelizmente, quase todos.
O casamento de 57 anos do Seu Joaquim e da Dona Florisbela não resistiu às finas paredes que separavam o 601 do 602.

Dona Flor foi embora, com malas em punho. Não saberia mais como viver ali sem Sheyla, a garota da porta ao lado.